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Lei de bases da habitação

Legal Flash: Lei de bases da habitação

Enquadramento

No passado dia 3 de setembro foi publicada a Lei n.º 83/2019 (a “Lei”), que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efetiva garantia desse direito a todos os cidadão, nos termos da Constituição. Gostaríamos de salientar alguns dos seus aspetos mais significativos:

1. Âmbito e princípios gerais

A Lei estipula que “todos têm direito à habitação, para si e para a sua família, independentemente da ascendência ou origem étnica, sexo, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, género, orientação sexual, idade, deficiência ou condição de saúde”, sendo incumbência do Estado garantir este direito, devendo, para o efeito, “programar e executar uma política de habitação integrada nos instrumentos de gestão territorial que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social”.

A promoção e defesa da habitação deverão ser prosseguidas através de políticas públicas, bem como de iniciativas privada, cooperativa e social, subordinadas ao interesse geral, ficando as políticas públicas sujeitas aos seguintes princípios: (i) universalidade do direito a uma habitação condigna para todos os indivíduos e suas famílias, (ii) igualdade de oportunidades e coesão territorial, com medidas de discriminação positiva quando necessárias, (iii) sustentabilidade social, económica e ambiental, promovendo a melhor utilização e reutilização dos recursos disponíveis, (iv) descentralização administrativa, subsidiariedade e cooperação, reforçando uma abordagem de proximidade, (v) transparência dos procedimentos públicos e (vi) participação dos cidadãos e apoio das iniciativas das comunidades locais e das populações.

A Lei estabelece que a função social da habitação traduz-se no “uso efetivo para fins habitacionais de imóveis ou frações com vocação habitacional, nos termos da presente lei e no quadro do interesse geral”.

A Lei considera como devolutas as habitações que se encontrem, injustificada e continuadamente, durante o prazo definido na lei, sem uso habitacional efetivo, por motivo imputável ao proprietário, devendo o Estado promover o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentivar o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada.

2. Direito à habitação e ao habitat

A Lei replica o preceituado na Constituição, i. e., que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade da vida pessoal e a privacidade pessoal”, incumbindo ao Estado “estabelecer a criação de um sistema de acesso à habitação com renda compatível com o rendimento familiar”.

A política de habitação integra medidas de proteção especial destinadas a jovens, cidadãos com deficiência, pessoas idosas e famílias com menores, monoparentais ou numerosas. Às “unidades de convivência”, i.e., os “conjuntos de pessoas que, de livre vontade, partilham habitação de forma habitual e permanente, sem economia comum e independentemente da relação existente entre si”, é conferida proteção equivalente à das famílias.

É, também, declarado que todos têm direito, nos termos da lei, à proteção da sua habitação permanente, sendo conferida especial proteção legal à casa de morada de família.

A Lei estabelece medidas de proteção e acompanhamento no despejo, devendo ser garantido pelo Estado, nomeadamente, (i) desde o início e até ao termo de qualquer tipo de procedimento de despejo, independentemente da sua natureza e motivação, a existência de serviços informativos, de meios de ação e de apoio judiciário, (ii) a obrigação de serem consultadas as partes afetadas no sentido de encontrar soluções alternativas ao despejo, (iii) o estabelecimento de um período de pré-aviso razoável relativamente à data do despejo, (iv) a não execução de penhora para satisfação de créditos fiscais ou contributivos, nos termos da lei, quando esteja em causa a casa de morada de família e (v) a existência de serviços públicos de apoio e acompanhamento de indivíduos ou famílias vulneráveis alvo de despejo, a fim de serem procuradas atempada e ativamente soluções de realojamento, nos termos da lei.

3. Políticas públicas de habitação

A Lei estabelece a existência de uma entidade pública promotora da política nacional de habitação (a qual concretiza as tarefas e responsabilidades do Estado em matéria de habitação), bem como a criação do Programa Nacional da Habitação (PNH), um documento plurianual, com uma duração não superior a seis anos, que estabelece os objetivos, prioridades, programas e medidas da política nacional de habitação, sendo proposto pelo Governo e aprovado por lei da Assembleia da República.

Anualmente deve ser assegurada a elaboração do Relatório Anual da Habitação, o qual deverá refletir o estado do direito à habitação (nomeadamente, a avaliação do cumprimento das metas estabelecidas no PNH).

A Lei determina igualmente a criação do Conselho Nacional de Habitação, que tem uma função consultiva do Governo em matéria da política nacional da habitação, competindo-lhe, nomeadamente, emitir parecer sobre a proposta de PNH e sobre o Relatório Anual da Habitação.

Quanto às autarquias (i) é criado um novo instrumento municipal de planeamento e ordenamento territorial em matéria de habitação, a Carta Municipal de Habitação, a articular, no quadro do Plano Diretor Municipal, com os restantes instrumentos de gestão do território, (ii) deverão elaborar anualmente o relatório municipal da habitação e (iii) é dada a possibilidade de constituição de conselhos locais de habitação, com funções consultivas. Adicionalmente, poderão os municípios fixar taxas diferenciadas de impostos em função do uso habitacional efetivo.

Quanto à regulação do mercado habitacional, para além de ter de assegurar o seu funcionamento eficiente e transparente, incumbe igualmente ao Estado assegurar celeridade nos processos de inventário e dos processos judiciais de heranças indivisas que incluam bens imóveis com aptidão habitacional.

4. Reabilitação

A Lei estabelece que o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais devem incentivar a reabilitação de edifícios e a reabilitação e regeneração urbanas, nos termos da lei, de forma a assegurar os princípios, objetivos e metas das políticas públicas de habitação.

Deverá ser realçado que, no âmbito da reabilitação do edificado, devem observar-se condições de eficiência energética, vulnerabilidade sísmica e acessibilidade.

5. Direito de preferência

A Lei estipula que, na concretização das políticas de solos, ordenamento do território, reabilitação urbana e habitação, deverá ser garantido ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais o recurso aos instrumentos adequados, nomeadamente à posse administrativa, ao direito de preferência e, quando necessário, à expropriação mediante indemnização.

Acresce que a Lei prevê que o Estado, as regiões autónomas e os municípios podem exercer o direito de preferência nas transmissões onerosas de prédios entre particulares, tendo em vista a prossecução de objetivos da política pública de habitação. Em caso de venda de imóveis em conjunto, o Estado, as regiões autónomas e os municípios gozam do direito de preferência para cada um dos imóveis.

A Lei estabelece igualmente que o direito de preferência das entidades públicas não prejudica o direito de preferência dos arrendatários habitacionais na compra e venda ou dação em cumprimento do locado onde residam, devendo a lei prever a respetiva graduação.

6. Bolsas de habitação

Para apoio à política de habitação, o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais devem garantir a existência de bolsas de habitação pública, sendo os seus fogos destinados ao arrendamento público e atribuídos por concurso ou através de processos de realojamento.

7. Arrendamento habitacional

A Lei estipula que o Estado deverá garantir o funcionamento regular e transparente do mercado de arrendamento habitacional e desenvolver uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar, nomeadamente, através da promoção de um mercado público de arrendamento e da regulação do mercado de arrendamento privado.

O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais podem desenvolver programas de habitação a custos controlados para arrendamento, a estabelecer com o setor privado ou cooperativo, devendo, neste caso, o património imobiliário público ser disponibilizado em regime de direito de superfície, podendo o mesmo, mediante autorização da entidade pública proprietária, ser utilizado como garantia para efeitos de contratação de empréstimos.

Quanto ao mercado privado de arrendamento, deverá o Estado promover a segurança, estabilidade e confiança no mesmo, nomeadamente, através da criação de modalidades de seguros de renda e de instrumentos eficazes de defesa dos direitos de senhorios e arrendatários.

A Lei prevê igualmente que a fiscalização do cumprimento das normas legais do arrendamento habitacional, a verificação das condições de habitabilidade dos fogos arrendados ou subarrendados e o combate a situações irregulares ou encapotadas de arrendamento ou subarrendamento habitacional deverá ser assegurada por entidade administrativa com competências para o efeito.

No que respeita ao crédito à habitação a Lei prevê (i) que, caso contratualmente estabelecido, é admitida a dação em cumprimento da dívida, extinguindo as obrigações do devedor independentemente do valor atribuído ao imóvel para esse efeito, cabendo à instituição de crédito prestar essa informação antes da celebração do contrato e (ii) que aos devedores de crédito à habitação que se encontrem em situação económica muito difícil pode ser aplicado um regime legal de proteção, que inclua a possibilidade de reestruturação da dívida, a dação em cumprimento, ou medidas substitutivas da execução hipotecária.

8. Condomínios, construção e reabilitação a custos controlados e propriedade resolúvel

Nos termos da Lei, a fiscalização efetiva da existência e utilização dos fundos de reserva dos condomínios deverá ser regulada por lei, devendo ainda os condomínios beneficiar de condições preferenciais para acesso a programas de requalificação e reabilitação urbana.

A lei poderá fixar prazos de inalienabilidade e um preço máximo para a transmissão de direitos reais sobre os fogos que resultem de promoção de construção nova ou reabilitação, a custos controlados, para habitação própria, que envolva apoios públicos.

A Lei estabelece que o Estado deverá garantir a existência de um regime legal de propriedade resolúvel para habitação, preferencialmente dirigido ao setor cooperativo ou social, podendo o Estado, as regiões autónomas e as autarquias promover programas habitacionais de propriedade resolúvel.

9. Entrada em vigor

A Lei entrará em vigor a 1 de outubro de 2019, exceto no que respeita às suas disposições com impacto orçamental, cuja entrada em vigor se dará posteriormente à publicação do primeiro orçamento a que esse impacto corresponda.


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